domingo, 3 de maio de 2009

São Miguel de Acha (III)

A memória é selectiva.

Ao longo do tempo voltei várias vezes a São Miguel de Acha, para curtas férias no campo, mas dessa minha primeira estadia tenho lembranças muito esparsas. Uma casa escura, com um intenso cheiro a fumo de lenha, desconfortáveis bancos e cadeiras de madeira para descansar, ausência de instalações sanitárias. Enfim, uma pobreza que me incomodava e deixava nada à-vontade. Até o próprio ambiente me repugnava, tal como o tocar nos objectos e a própria comida.

Lembro de uma manhã o meu pai me ter levado por umas ruas apertadas e sinuosas, empedradas de piso irregular, até à igreja local onde me mostrou a pequena escultura do Dragão enfrentando a lança de São Jorge, na fachada sobre o portal de entrada. Aí ele me relatou o episódio do confronto, na versão tradicional, com a qual eu não estava, nem estou, de acordo. Perante a imagem da furiosa investida de São Jorge sobre o Dragão, espezinhado sob as patas do corcel, eu sentia repulsa pela iniquidade do dito Santo e pela insistência na inversão dos factos numa mentira preconceituosa. No entanto, escutei o relato de meu pai sem questionar, ou revelar o meu desacordo pela interpretação tendenciosa.

Meu pai era a figura da autoridade que não se pode questionar, eu limitava-me a escutar as suas opiniões sem as afrontar. Demasiado arriscado seria fazê-lo, pelo menos a meu ver. Era na base desse temor que se construíam as minhas relações com ele.

Posteriormente voltei mais vezes, para curtos períodos de férias no verão. Ficava sempre em casa da minha Tia Celeste. Ela e o marido haviam comprado uma propriedade à saída da aldeia, com casa, anexos, jardim, uma horta e um terreno com figueiras e oliveiras. Aqui as condições eram melhores, com quartos mobilados e casa-de-banho com uma grande banheira antiga.

Dessa primeira visita apenas recordo os episódios relatados. Recordo também que não foi uma estadia tão longa quanto esperávamos, pois até mesmo o meu pai já não estava mais habituado à pobreza em que havia crescido. Por isso ao fim de uma semana partimos apressadamente de regresso à civilidade urbana. Todos ansiávamos por um bom banho.

segunda-feira, 16 de março de 2009

São Miguel de Acha (II)

A camioneta parou à saida duma pequena ponte que atravessava uma ribeira, que secava todos os verões e rasgava transversalmente o largo central da aldeia. Descemos.

O meu Pai olhava ansioso em redor, esperando vislumbrar o seu pai e eu tentava recuperar o equilíbrio e a compostura, após o enjoo da longa viagem. A minha Mãe e a Tia Doroteia ocupavam-se das nossas bagagens, que o revisor ia retirando do porta-bagagens.
Velhos, de ambos os sexos, espalhavam-se em pequenos grupos, sentados nos degraus da entrada das casas que se perfilavam desordenadas na berma da estrada. Casas de pedra granítica, algumas caiadas de branco. Notei que apenas a estrada, por onde havíamos chegado, era asfaltada, enquanto as ruas que dela partiam eram de calçada de negras pedras de basalto, irregulares, o que resultava numa superfície desnivelada, deixando adivinhar um caminhar tortuoso e trôpego.

Vi meu Pai falar com um velho, perguntando por seu pai. O velho partiu e pouco depois vi outro velhinho risonho apressar-se, quase correndo, na nossa direcção. Meu Pai se precipitou, na sua desequilibrada corridinha coxa (meu Pai era coxo, devido a uma paralisia infantil que o deixara estropiado duma perna), para o velhinho que abraçou com os olhos marejados de lágrimas. O velhinho antes de aceitar o abraço apressou-se a tirar o chapéu da cabeça, que manteve sempre na mão enquanto nos cumprimentou a todos.

"Este é o meu netinho?! Como está o menino?", dirigiu-se-me o meu Avô, com uma deferência que me deixou embaraçado, pois ele falava como se eu fosse uma individualidade hierarquicamente superior a ele. Achei isso um comportamento bizarro demais para um idoso se dirigir a uma criança; mais ainda por ser ao seu próprio neto. Nunca ninguém se havia a mim dirigido com tal deferência. Fazia-me sentir um príncipe ou outra entidade aristocrática. Jamais alguém me tratara de tal modo.
E sempre aquele chapéu negro, manchado de suor, na mão trémula, calosa e morena do sol por muitas décadas de árduo trabalho rural.