Afinal não era assim!
Quando os meus pais me anunciaram que eu viria de férias com eles até à Metrópole (era assim que o território de Portugal era referido nas colónias) eu rejubilara, pois finalmente viria conhecer o mundo civilizado. O centro glorioso do vasto império português. Ingenuidade...
Eu sonhava que iria encontrar um país modelar, evoluido. O espelho resplandecente das grandezas de tão enfatizado império.
Mas o que encontrei foram casas velhas, edifícios decrépitos, gentes enfadadas e sombrias. Ruas estreitas e pavimentadas com pedra na sua maioria, tendo essas pisos incomodamente desnivelados.
Era tudo tão velho e decrépito, ao olhar do menino (10 anos) que sonhara vir encontrar cidades que espelhassem a modernidade, por se encontrarem no continente-mãe da civilização na qual a história do seu país se integrava, como aquele com as mais velhas fronteiras definidas da Europa.
Afinal era tudo cinzento e decrépito!
E como se não bastasse... havia o choque do quotidiano mais íntimo.
Meus pais eram industriais de confecções; proprietários da «Marinex, Lda», que a minha mãe fundara e o meu pai geria. Eu crescera com desafogo, embora sem luxos. Meus pais eram pessoas simples, modestas e sem pretensões de ostentação. Contudo proporcionavam-nos o conforto e bem-estar bastante para nos considerarmos uma família feliz (materialmente falando). Enfim, eu era um menino filho de patrões, acostumado a ter criados em casa e dois carros na garagem; isto nos idos anos 60. Para o estilo de vida no Portugal continental, tal poderia ser considerado um luxo, mas no modelo de vida das colónias nem era tão extravagante assim.
Mas ao chegar ao Barreiro vi-nos instalados em casas de operários. Casas com poucos e pequenos cómodos, em que a vida girava em torno da cozinha, pois não havia sala-de-estar. Eram duas casas, onde se distribuiam dois núcleos da mesma família; uma do Tio Mário (onde se instalaram os meus pais) e a outra do Zé Pêra (onde me instalaram a mim). Embora a casa do Tio Mário fosse de construção mais velha, já tinham edificado uma casa-de-banho, pequena mas com banheira e azulejos brancos nas paredes. Aproveitaram para tal uma área dum páteo interior coberto a que davam o nome de «quintal». Casa-de-banho era um luxo indisponível na casa do Zé Pêra, onde as necessidades fisiológicas eram aliviadas numa pia de despejos, disfarçada num dos cantos da cozinha.
Mas embora modestas, eram casas asseadas que espelhavam a dignidade humana dos seus ocupantes; operários humildes, mas pessoas respeitadas e respeitadoras. E foi essa modéstia e dignidade que encontrei em casa de todos os restantes amigos e familiares, que depois fui conhecendo.
Afinal eu podia ser um «menino bem», «filho de patrão», mas provinha de famílias operárias e modestas.
segunda-feira, 28 de julho de 2008
terça-feira, 15 de julho de 2008
Caldeirada de Bacalhau
Haviamos tomado um pequeno-almoço, rápido e mal-mastigado, na sala de refeições do navio. O nervosismo da chegada não dava para tranquilas rotinas. Fomos ao camarote buscar as nossas bagagens de mão e precipitámo-nos para o portaló de desembarque.
Os meus dez anos de idade e a minha ânsia de ver Lisboa e pisar solo europeu, não me permitiam dar muita atenção aos pormenores burocráticos em que os meus pais se viram embrenhados, quando chegou a nossa vez, na longa fila que já se havia formado para desembarque. Mas depois de toda a documentação tratada lá me vi a descer aquelas inenarráveis escadas de portaló, tentando controlar a minha ansiedade e não dar um palso em falso, que me levasse a escorregar perigosamente. Aqueles mihares de pessoas continuavam se acotovelavando, contra o longo varandim, tentando distinguir algum rosto conhecido, entre aqueles que iam abandonando o enorme paquete.
Pés em solo firme, logo nos precipitamos em direcção à enorme porta que dava acesso ao átrio do edifício da gare. Ao atravessá-lo reparei na beleza estranhamente moderna dos imensos morais, repletos de figuras humanas que se sobrepunham umas nas outras, decorando as paredes de alto a baixo. Mas o momento não era de contemplações museológicas, os meus pais arrastaram-me para o exterior ao encontro dum tumulto de abraços e saudações. Sufocante!
Incómoda e irritantemente sufocantes!
Puxado, amassado, beijado, abraçado, atordoado eu perdi a noção de espaço e de tempo. Apenas me queria ver livre daquele grupo excitado, entre os quais eu não distinguia os familiares e dos amigos. Todos me eram estranhos.
E a partir daí... tudo ficou indistinto. Apenas uma vaga lembrança, uma sombra de desilusão. Os edifícios velhos e soturnos, como as pessoas que nas ruas seguiam absortas, vestidas dum modo... cinzento. Era essa a ideia que me ocorria; cinzento. Era tudo tão cinzento...
Acordei do torpor quando alguém me disse: Esta é a casa dos teus avós. Vou deixar-te aqui e depois os teus pais virão ter contigo. Haviam me trazido de Lisboa até ao Barreiro, sem que eu me apercebesse, tal a estranhesa de tudo por onde passava.
Os meus pais haviam ficado na gare marítima, tratando do despacho das bagagens que vinham no porão. Outros me haviam trazido para o Barreiro. E eu estava frente à porta duma casa pequena, baixa, pobre, numa pequena rua, a que chamavam travessa, que não era asfaltada mas sim pavimentada com grandes pedras negras, dum formato mais ou menos quadrangular. Era um piso deveras irregular, embora as pedras aparentassem ter sido dispostas dum modo regular.
Correspondendo aos apelos da velha senhora, a minha avó, que me estendia os braços, eu entrei para mais uma sessão de beijos e manifestações efusivas de boas vindas. O meu avô teve um cumprimento mais sóbrio. Graças!!! O ânsião tinha um olhar grave, sob as sobrancelhas grossas e grisalhas.
- Ainda não almoçaste, pois não, meu netinho? - perguntou a minha avó, avançando logo com a resposta óbvia. Eram horas de almoço já e eu havia sido trasladado directamente do navio para aquele casebre escuro e minúsculo. As paredes não tinham janelas, apenas uma ostentava a porta por onde eu entrara.
Era um cómodo único, que pude verificar servir para várias funções; mesmo até para outras de cariz mais intimista, que eu pude constactar para meu grande choque. Frente à porta erguia-se uma escada que levava ao piso de cima, onde ficava o quarto dos meus avós, como me informaram mais tarde, mas onde nunca cheguei a ir. Debaixo da escada estava um catre, onde me disseram dormia o meu primo António Zé, que estava prestes a chegar do trabalho e então almoçariamos todos. No centro da divisão quadrada, estava uma mesa também quadrada e num dos cantos, sob uma chaminé enegrecida pelo fumo, ficava o fogão mais estranho que eu já vira na minha vida: um fogão a lenha!
Pois... era esse o motivo porque as paredes estavam enegrecidas e a atmosfera tinha um odor forte.
A minha avó ia tagarelando, enquanto dispunha os pratos e talheres para o almoço. Finalmente o meu primo chegou e fomos apresentados. Ele me saudou com uma indiferença simpática, insinuando um sorriso meio gozão; afinal eu era o tal primo, quase que estrangeiro, que vinha lá dos confins do mundo onde ficava África. - Então, avó, o almoço está pronto? - apressou ele a velha senhora, mostrando pouco interesse pela minha presença.
Sentámo-nos à mesa para almoçar e a minha avó serviu os pratos. Quando olhei para o meu... se todo o ambiente escuro e claustrofóbico da casa me causava quase náuseas, o repasto não ajudou em nada à melhoria do meu estado de enjoo. Sempre me haviam habituado a uma educação estóica de tudo suportar, com uma simpatia cortês. E foi assim que eu tive de almoçar como minha primeira refeição em Portugal, uma iguaria que nunca gostei: caldeirada de bacalhau.
Os meus dez anos de idade e a minha ânsia de ver Lisboa e pisar solo europeu, não me permitiam dar muita atenção aos pormenores burocráticos em que os meus pais se viram embrenhados, quando chegou a nossa vez, na longa fila que já se havia formado para desembarque. Mas depois de toda a documentação tratada lá me vi a descer aquelas inenarráveis escadas de portaló, tentando controlar a minha ansiedade e não dar um palso em falso, que me levasse a escorregar perigosamente. Aqueles mihares de pessoas continuavam se acotovelavando, contra o longo varandim, tentando distinguir algum rosto conhecido, entre aqueles que iam abandonando o enorme paquete.
Pés em solo firme, logo nos precipitamos em direcção à enorme porta que dava acesso ao átrio do edifício da gare. Ao atravessá-lo reparei na beleza estranhamente moderna dos imensos morais, repletos de figuras humanas que se sobrepunham umas nas outras, decorando as paredes de alto a baixo. Mas o momento não era de contemplações museológicas, os meus pais arrastaram-me para o exterior ao encontro dum tumulto de abraços e saudações. Sufocante!
Incómoda e irritantemente sufocantes!
Puxado, amassado, beijado, abraçado, atordoado eu perdi a noção de espaço e de tempo. Apenas me queria ver livre daquele grupo excitado, entre os quais eu não distinguia os familiares e dos amigos. Todos me eram estranhos.
E a partir daí... tudo ficou indistinto. Apenas uma vaga lembrança, uma sombra de desilusão. Os edifícios velhos e soturnos, como as pessoas que nas ruas seguiam absortas, vestidas dum modo... cinzento. Era essa a ideia que me ocorria; cinzento. Era tudo tão cinzento...
Acordei do torpor quando alguém me disse: Esta é a casa dos teus avós. Vou deixar-te aqui e depois os teus pais virão ter contigo. Haviam me trazido de Lisboa até ao Barreiro, sem que eu me apercebesse, tal a estranhesa de tudo por onde passava.
Os meus pais haviam ficado na gare marítima, tratando do despacho das bagagens que vinham no porão. Outros me haviam trazido para o Barreiro. E eu estava frente à porta duma casa pequena, baixa, pobre, numa pequena rua, a que chamavam travessa, que não era asfaltada mas sim pavimentada com grandes pedras negras, dum formato mais ou menos quadrangular. Era um piso deveras irregular, embora as pedras aparentassem ter sido dispostas dum modo regular.
Correspondendo aos apelos da velha senhora, a minha avó, que me estendia os braços, eu entrei para mais uma sessão de beijos e manifestações efusivas de boas vindas. O meu avô teve um cumprimento mais sóbrio. Graças!!! O ânsião tinha um olhar grave, sob as sobrancelhas grossas e grisalhas.
- Ainda não almoçaste, pois não, meu netinho? - perguntou a minha avó, avançando logo com a resposta óbvia. Eram horas de almoço já e eu havia sido trasladado directamente do navio para aquele casebre escuro e minúsculo. As paredes não tinham janelas, apenas uma ostentava a porta por onde eu entrara.
Era um cómodo único, que pude verificar servir para várias funções; mesmo até para outras de cariz mais intimista, que eu pude constactar para meu grande choque. Frente à porta erguia-se uma escada que levava ao piso de cima, onde ficava o quarto dos meus avós, como me informaram mais tarde, mas onde nunca cheguei a ir. Debaixo da escada estava um catre, onde me disseram dormia o meu primo António Zé, que estava prestes a chegar do trabalho e então almoçariamos todos. No centro da divisão quadrada, estava uma mesa também quadrada e num dos cantos, sob uma chaminé enegrecida pelo fumo, ficava o fogão mais estranho que eu já vira na minha vida: um fogão a lenha!
Pois... era esse o motivo porque as paredes estavam enegrecidas e a atmosfera tinha um odor forte.
A minha avó ia tagarelando, enquanto dispunha os pratos e talheres para o almoço. Finalmente o meu primo chegou e fomos apresentados. Ele me saudou com uma indiferença simpática, insinuando um sorriso meio gozão; afinal eu era o tal primo, quase que estrangeiro, que vinha lá dos confins do mundo onde ficava África. - Então, avó, o almoço está pronto? - apressou ele a velha senhora, mostrando pouco interesse pela minha presença.
Sentámo-nos à mesa para almoçar e a minha avó serviu os pratos. Quando olhei para o meu... se todo o ambiente escuro e claustrofóbico da casa me causava quase náuseas, o repasto não ajudou em nada à melhoria do meu estado de enjoo. Sempre me haviam habituado a uma educação estóica de tudo suportar, com uma simpatia cortês. E foi assim que eu tive de almoçar como minha primeira refeição em Portugal, uma iguaria que nunca gostei: caldeirada de bacalhau.
sexta-feira, 11 de julho de 2008
Chegada
Era manhã, bem cedo.
Eu dormia num dos beliche do camarote, perdido num convés inferior, num labirinto de corredores e escadas confusamente idênticos. A voz da minha mãe acordou-me:
- Anda, filho. Levanta-te e veste. Estamos chegando.
Eu obedeci com prontidão, como era meu hábito. Sempre reconheci e respeitei a função da autoridade.
Passado breves minutos já eu a acompanhava rumo ao convés exterior. Ao sair para o ar frio e húmido da manhã vi que o navio já navegava entre as duas margens do Tejo e logo os meus olhos procuraram, na luz leve azul que o Sol ainda não corrompera, a forma inconfundível pela qual tanto ansiara poder olhar directamente, ao vivo.
Lá estava ela elevando-se majestosa, imponente acima da proa garbosa. Os dois pilares altaneiros, suportando toda a cabulação de onde pendia o tabuleiro; a Ponte sobre o Tejo.
Num silêncio deslumbrado, quase religioso, acompanhei a minha mãe que me conduzia até mais perto da proa para eu ter mais espaço de onde pudesse contemplar desafogadamente. Meu olhar não se desviava daquela visão magnifica, recortada no céu matizado agora, com os tons do Sol nascente. A imponente estrutura avançava suavemente ao encontro do navio, agigantando-se cada vez mais imponente. Eu ignorava por completo que na margem desfilavam outras obras dignas da minha admiração respeitosa; a Torre de Belém, o Padrão dos Descobrimentos, o Mosteiro dos Jerónimos, enfim. A visão da ponte que se aproximava e a expectativa de ver como conseguiria ela elevar-se acima do altaneiro mastro de radar do paquete, era uma cena que indelevelmente se desenhava para mim e perante mim; que eu queria gravar para sempre na minha memória.
Lentamente a imensa estrutura de aço, pintada de vermelho, se erguia sempre mais alto ao aproximar do navio, até ao momento em que eu já a podia ver por baixo. Os meus olhos fitavam ora a ponte, ora o mastro, enquanto eles se aproximavam inexoravelmente. Passará? Passará? Passará?
Olhando de baixo parecia que ambas as estruturas quase roçavam. Então o troar da busina do navio anunciou a sua chegada ao Porto de Lisboa, rodeado já pelos rebocadores que o manobrariam no seu atracamento ao cais da Gare Marítima de Alcântara.
Despertei então do meu torpor encantado e verifiquei que já o convés se apinhara duma multidão ansiosa por vislumbrar os seus entes queridos entre a outra multidão que se apinhava do lado de terra, acenando freneticamente ao longo dos vastos terraços que ladeavam o edifício da gare.
Eu havia chegado à Metrópole! Finalmente iria pisar solo europeu. Finalmente um sonho meu estava prestes a se realizar.
Eu dormia num dos beliche do camarote, perdido num convés inferior, num labirinto de corredores e escadas confusamente idênticos. A voz da minha mãe acordou-me:
- Anda, filho. Levanta-te e veste. Estamos chegando.
Eu obedeci com prontidão, como era meu hábito. Sempre reconheci e respeitei a função da autoridade.
Passado breves minutos já eu a acompanhava rumo ao convés exterior. Ao sair para o ar frio e húmido da manhã vi que o navio já navegava entre as duas margens do Tejo e logo os meus olhos procuraram, na luz leve azul que o Sol ainda não corrompera, a forma inconfundível pela qual tanto ansiara poder olhar directamente, ao vivo.
Lá estava ela elevando-se majestosa, imponente acima da proa garbosa. Os dois pilares altaneiros, suportando toda a cabulação de onde pendia o tabuleiro; a Ponte sobre o Tejo.
Num silêncio deslumbrado, quase religioso, acompanhei a minha mãe que me conduzia até mais perto da proa para eu ter mais espaço de onde pudesse contemplar desafogadamente. Meu olhar não se desviava daquela visão magnifica, recortada no céu matizado agora, com os tons do Sol nascente. A imponente estrutura avançava suavemente ao encontro do navio, agigantando-se cada vez mais imponente. Eu ignorava por completo que na margem desfilavam outras obras dignas da minha admiração respeitosa; a Torre de Belém, o Padrão dos Descobrimentos, o Mosteiro dos Jerónimos, enfim. A visão da ponte que se aproximava e a expectativa de ver como conseguiria ela elevar-se acima do altaneiro mastro de radar do paquete, era uma cena que indelevelmente se desenhava para mim e perante mim; que eu queria gravar para sempre na minha memória.
Lentamente a imensa estrutura de aço, pintada de vermelho, se erguia sempre mais alto ao aproximar do navio, até ao momento em que eu já a podia ver por baixo. Os meus olhos fitavam ora a ponte, ora o mastro, enquanto eles se aproximavam inexoravelmente. Passará? Passará? Passará?
Olhando de baixo parecia que ambas as estruturas quase roçavam. Então o troar da busina do navio anunciou a sua chegada ao Porto de Lisboa, rodeado já pelos rebocadores que o manobrariam no seu atracamento ao cais da Gare Marítima de Alcântara.
Despertei então do meu torpor encantado e verifiquei que já o convés se apinhara duma multidão ansiosa por vislumbrar os seus entes queridos entre a outra multidão que se apinhava do lado de terra, acenando freneticamente ao longo dos vastos terraços que ladeavam o edifício da gare.
Eu havia chegado à Metrópole! Finalmente iria pisar solo europeu. Finalmente um sonho meu estava prestes a se realizar.
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