terça-feira, 15 de julho de 2008

Caldeirada de Bacalhau

Haviamos tomado um pequeno-almoço, rápido e mal-mastigado, na sala de refeições do navio. O nervosismo da chegada não dava para tranquilas rotinas. Fomos ao camarote buscar as nossas bagagens de mão e precipitámo-nos para o portaló de desembarque.

Os meus dez anos de idade e a minha ânsia de ver Lisboa e pisar solo europeu, não me permitiam dar muita atenção aos pormenores burocráticos em que os meus pais se viram embrenhados, quando chegou a nossa vez, na longa fila que já se havia formado para desembarque. Mas depois de toda a documentação tratada lá me vi a descer aquelas inenarráveis escadas de portaló, tentando controlar a minha ansiedade e não dar um palso em falso, que me levasse a escorregar perigosamente. Aqueles mihares de pessoas continuavam se acotovelavando, contra o longo varandim, tentando distinguir algum rosto conhecido, entre aqueles que iam abandonando o enorme paquete.

Pés em solo firme, logo nos precipitamos em direcção à enorme porta que dava acesso ao átrio do edifício da gare. Ao atravessá-lo reparei na beleza estranhamente moderna dos imensos morais, repletos de figuras humanas que se sobrepunham umas nas outras, decorando as paredes de alto a baixo. Mas o momento não era de contemplações museológicas, os meus pais arrastaram-me para o exterior ao encontro dum tumulto de abraços e saudações. Sufocante!
Incómoda e irritantemente sufocantes!

Puxado, amassado, beijado, abraçado, atordoado eu perdi a noção de espaço e de tempo. Apenas me queria ver livre daquele grupo excitado, entre os quais eu não distinguia os familiares e dos amigos. Todos me eram estranhos.
E a partir daí... tudo ficou indistinto. Apenas uma vaga lembrança, uma sombra de desilusão. Os edifícios velhos e soturnos, como as pessoas que nas ruas seguiam absortas, vestidas dum modo... cinzento. Era essa a ideia que me ocorria; cinzento. Era tudo tão cinzento...

Acordei do torpor quando alguém me disse: Esta é a casa dos teus avós. Vou deixar-te aqui e depois os teus pais virão ter contigo. Haviam me trazido de Lisboa até ao Barreiro, sem que eu me apercebesse, tal a estranhesa de tudo por onde passava.
Os meus pais haviam ficado na gare marítima, tratando do despacho das bagagens que vinham no porão. Outros me haviam trazido para o Barreiro. E eu estava frente à porta duma casa pequena, baixa, pobre, numa pequena rua, a que chamavam travessa, que não era asfaltada mas sim pavimentada com grandes pedras negras, dum formato mais ou menos quadrangular. Era um piso deveras irregular, embora as pedras aparentassem ter sido dispostas dum modo regular.

Correspondendo aos apelos da velha senhora, a minha avó, que me estendia os braços, eu entrei para mais uma sessão de beijos e manifestações efusivas de boas vindas. O meu avô teve um cumprimento mais sóbrio. Graças!!! O ânsião tinha um olhar grave, sob as sobrancelhas grossas e grisalhas.

- Ainda não almoçaste, pois não, meu netinho? - perguntou a minha avó, avançando logo com a resposta óbvia. Eram horas de almoço já e eu havia sido trasladado directamente do navio para aquele casebre escuro e minúsculo. As paredes não tinham janelas, apenas uma ostentava a porta por onde eu entrara.
Era um cómodo único, que pude verificar servir para várias funções; mesmo até para outras de cariz mais intimista, que eu pude constactar para meu grande choque. Frente à porta erguia-se uma escada que levava ao piso de cima, onde ficava o quarto dos meus avós, como me informaram mais tarde, mas onde nunca cheguei a ir. Debaixo da escada estava um catre, onde me disseram dormia o meu primo António Zé, que estava prestes a chegar do trabalho e então almoçariamos todos. No centro da divisão quadrada, estava uma mesa também quadrada e num dos cantos, sob uma chaminé enegrecida pelo fumo, ficava o fogão mais estranho que eu já vira na minha vida: um fogão a lenha!
Pois... era esse o motivo porque as paredes estavam enegrecidas e a atmosfera tinha um odor forte.

A minha avó ia tagarelando, enquanto dispunha os pratos e talheres para o almoço. Finalmente o meu primo chegou e fomos apresentados. Ele me saudou com uma indiferença simpática, insinuando um sorriso meio gozão; afinal eu era o tal primo, quase que estrangeiro, que vinha lá dos confins do mundo onde ficava África. - Então, avó, o almoço está pronto? - apressou ele a velha senhora, mostrando pouco interesse pela minha presença.

Sentámo-nos à mesa para almoçar e a minha avó serviu os pratos. Quando olhei para o meu... se todo o ambiente escuro e claustrofóbico da casa me causava quase náuseas, o repasto não ajudou em nada à melhoria do meu estado de enjoo. Sempre me haviam habituado a uma educação estóica de tudo suportar, com uma simpatia cortês. E foi assim que eu tive de almoçar como minha primeira refeição em Portugal, uma iguaria que nunca gostei: caldeirada de bacalhau.

3 comentários:

São disse...

Com te compreendo na sensação de sufoco de abraços e beijos avassaladores e no desprazer dessa refeição, meu amigo!!
Semana muito boa.

SILÊNCIO CULPADO disse...

Também não sou apreciadora de caldeira de bacalhau nem de cumprimentos efusivos e obrigatórios.
Imagino o que sentiste.
Abraço

Ramarago disse...

Bem... deve ser mesmo genético!!!! eu também munca gostei de caldeirada da "Bacalhau"... é bom reler estes teus apontamentos, que me fazem "recordar" algo que nunca conheci... mas que sinto tb fazerem parte de mim... isto é o que se chama um documento "histórico" :)- beijos.